A desembargadora Sandra Inês Azevedo, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), suspendeu a polêmica sentença da juíza Marivalda Almeida Moutinho que dava a um único homem, José Valter Dias, a posse de 366 mil hectares de terra em Formosa do Rio Preto, no Oeste da Bahia. A área do terreno equivale a cinco vezes a cidade de Salvador.
Na decisão publicada na quinta-feira, 31 de janeiro, a desembargadora aponta que a decisão de Marivalda foi tomada “em total desrespeito” a uma ordem anterior do TJBA, além de evidenciar “total desatendimento aos preceitos legais.”
Paralelamente, a Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados encaminhou ofício ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, e a outras autoridades pedindo providências para investigar o conflito fundiário na região. A comissão aponta a suspeita de envolvimento de magistrados locais e servidores do Incra em um esquema de grilagem de terras.
O ofício aponta que, em audiência pública no dia 4 de dezembro na Comissão de Agricultura, foi notificada “a existência de mecanismos sistêmicos de grilagem de terras na região oeste da Bahia, com ênfase no município de Formosa do Rio Preto, que resultam na manipulação e inserção fraudulenta de dados nos registros públicos de terrenos rurais com vistas ao desapossamento de mais de 300 agricultores da região, havendo, inclusive, a suspeita do envolvimento de servidores públicos do Incra e de membros da magistratura local.”
O ofício foi encaminhado também ao presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Dias Toffoli, ao governador da Bahia, Rui Costa, além do Incra, Polícia Federal e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Entre os pedidos de providências está o auxílio na investigação sobre a sequência de moradias de José Valter Dias nos últimos 40 anos e documentos públicos que atestem seus bens nesse período.
O ofício também aponta o risco de fraude documental envolvendo um Parque Nacional na região, cuja competência de fiscalização é da União. As terras da reserva ambiental estão entre as reclamadas por José Valter Dias. O assunto está em discussão na Justiça Federal e no CNJ.
A região de Formosa do Rio Preto foi colonizada em 1980 por agricultores vindos do Paraná, contando com incentivos do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer II) – um programa agrícola do governo brasileiro em parceria com o japonês, que se destinava a criar novas fronteiras agrícolas no cerrado brasileiro.
Apesar de os agricultores produzirem nas terras há mais de 30 anos, José Valter Dias entrou com ação na Justiça alegando ter comprado de supostos herdeiros os direitos sucessórios de toda a região. Ele usou como base um inventário de 1915.
Inicialmente o juiz Sérgio Humberto de Quadros Sampaio, que atuava em Formosa do Rio Preto, deu uma liminar (decisão provisória) transferindo a posse das terras a José Valter Dias e determinando a saída de todos os 300 agricultores do local. A decisão foi proferida sem que os agricultores nem o Ministério Público fossem ouvidos, o que foi questionado por ambos. Posteriormente, o juiz deixou a causa declarando-se suspeito para julgá-la.
Em dezembro, a desembargadora Sandra Inês Azevedo suspendeu a liminar, revertendo a posse aos agricultores.
Apesar disso, ao ser designada pelo TJBA para atuar por apenas um mês em Formosa do Rio Preto, a juíza Marivalda Moutinho ignorou a decisão da desembargadora Sandra Azevedo, de instância hierarquicamente superior, e proferiu uma sentença de mérito confirmando a liminar – ainda que sem ouvir as partes envolvidas – e revertendo toda a área a José Valter Dias, em prejuízo dos agricultores.
Ao mesmo tempo, em outra decisão que causou estranheza, Marivalda aplicou multa de R$ 1 milhão a uma das partes que apontou sua suspeição para julgar o processo. O pedido de suspeição afirmava que a juíza manteria vínculos com Adailton Maturino, que se apresenta como mediador de conflitos agrários e cônsul da Guiné-Bissau no Brasil (o Itamaraty nega que ele tenha esse título). A mulher de Adailton, por sua vez, virou sócia de José Valter Dias em uma holding criada logo que ele virou o “dono” das terras, com base na liminar do juiz Sérgio Sampaio. A holding vem cobrando de 20 a 80 sacas de soja por hectares de agricultores para que possam permanecer no local.
Ao suspender a sentença, a desembargadora Sandra Inês Azevedo apontou que Marivalda agiu de forma totalmente irregular ao julgar o pedido de suspeição contra ela própria. A desembargadora explicou que, diante de um pedido de suspeição, o juiz pode tomar duas providências: ou declarar-se suspeito, encaminhando o processo imediatamente a um substituto, ou encaminhar o pedido para análise pelo tribunal de instância superior – o que não foi feito no caso.
“Não tendo sido tomada qualquer das providências, seja declarar-se suspeita ou encaminhar o incidente ao Tribunal de Justiça, imperativa se faz a concessão da liminar em mandado de segurança, até porque a sentença proferida mostra-se teratológica por inexistir, no direito, a previsão de que o próprio juiz sentencie a exceção de suspeição contra si proposta”, concluiu a desembargadora.
Marivalda ficou conhecida nacionalmente pela controversa decisão de absolver sumariamente nove policiais militares envolvidos na Chacina do Cabula, em 2015, quando 12 jovens foram mortos em Salvador. A juíza também chegou a ser afastada de suas funções em 2006, por acusações como despachar processos com a intenção de favorecer terceiros e movimentar, em sua conta bancária, valores superiores à sua renda anual, mas o processo terminou arquivado.
Fonte: Folha Geral
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